sexta-feira, 24 de abril de 2009

Eu jogo a toalha


Azuete Fogaça


Tudo bem. Eu jogo a toalha e desisto da luta.



Diante dos argumentos reiteradamente apresentados em editoriais e artigos de jornal, agora acredito que não há racismo no Brasil: nós, negros, é que interpretamos a história do país e os acontecimentos cotidianos de nossas vidas de forma deliberadamente equivocada, à cata de ações afirmativas que implicam em privilégios inaceitáveis numa sociedade igualitária e justa como a nossa.




Assim, quando atendia à campainha em minha casa, num bairro de classe média em São Paulo, e o vendedor de enciclopédias, branco, dizia que chamasse a dona da casa, aquilo não era racismo: ele só queria falar com alguém que tivesse condições de comprar os livros que vendia. Se num pequeno entrevero no trânsito carioca, dirigindo um carro de luxo, o outro motorista, branco, perguntou se a minha “patroa” sabia que eu tinha pego o carro dela, não era racismo: era uma dúvida razoável; afinal, “preto” e “pobre” são quase sinônimos. Quando, ao chegar à noite em um hotel cinco estrelas em Brasilia, o gerente chamou meu marido a um canto do balcão, para avisar que não permitia a entrada de prostitutas, não era racismo: era apenas cuidado em preservar as boas normas do hotel.





Começo a entender que fatos como estes são motivados pura e simplesmente pelo zelo, pelo cuidado em fazer com que tudo funcione corretamente, tudo nos seus devidos lugares e de acordo com os bons princípios que regem a vida em sociedade, coisas que não combinam com as tão conhecidas características dos negros: a indolência, a vocação para os maus hábitos, a incapacidade de raciocinar, a sexualidade excessiva e desavergonhada e a tendência à transgressão, à violência e à marginalidade.





Dessa forma, passo a ver que atribuir à implantação do sistema de cotas para negros nas universidades a responsabilidade pela queda da qualidade do ensino superior, também não é racismo: trata-se de uma preocupação legítima diante dos impactos negativos previsíveis com a entrada dos negros na esfera das atividades intelectualizadas e das profissões socialmente prestigiadas e melhor remuneradas.





Afinal, a sociedade brasileira precisa de bons médicos, bons advogados, bons economistas, bons administradores e especialistas de alto nível nas áreas de tecnologia de ponta. Então, há que se preservar o sacrossanto espaço de formação das elites deste país, para que ele não seja conspurcado por quem comprovadamente só tem talento para o samba e para o futebol, mesmo que esse espaço seja mantido com o dinheiro de todos. O importante é manter os rumos de um admirável processo de desenvolvimento sócio-político e econômico que estará ameaçado pela concessão de “privilégios” aos negros. Para evitar tal desgraça, é fundamental garantir a universidade pública para o segmento cuja trajetória social comprova sua capacidade e competência. Afinal, o que se quer é o bom uso do dinheiro público. E, com isso, o Brasil continuará a sua marcha grandiosa, a salvo da influência nefasta dos “sem mérito”.




De resto, contentemo-nos, os negros, com as profissões subalternas, mais adequadas às nossas limitações naturais, e lambamos os beiços quando usufruirmos das sobras do banquete. Estamos em uma democracia que permite que usemos as mesmas praias que os brancos, os mesmos estádios de futebol e os mesmos banheiros nos shoppings. Ainda que em favelas, podemos até morar nos mesmos bairros. Nossos retratos até saem nos jornais: se não somos 50% nas universidades públicas, somos quase 100% nas penitenciárias; se não somos banqueiros e industriais, somos a liderança do tráfico de drogas; se não somos médicos famosos ou executivos poderosos, somos a maioria dos que fracassam na educação básica; se pouco aparecemos nas novelas e nos comerciais, somos o motor do turismo sexual, nas imagens de carnaval que destacam a nudez e o rebolado das negras; se somos raros professores universitários, somos a grande maioria nas estatísticas da marginalidade e do abandono infantil e juvenil. Não há do que reclamar.






Aqueles que, como eu - que até sei sambar, mas consegui chegar a um doutorado em universidade pública e me tornar professora universitária – são provas concretas da democracia racial, devem rezar todos os dias, aos santos e aos orixás, agradecendo a bondade daqueles que, complacentemente, nos concederam o privilégio de chegar onde chegamos.





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